Ligado 14 Julho 2014.
“Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente”,
reza o parágrafo único do Art. 1º da Constituição Federal de 1988 (CF88). Por
outro lado, o Título VIII, “Da Ordem Social”, estabelece várias formas de
participação, sendo que o Art. 204, ao tratar da assistência social, define
especificamente diretrizes para a descentralização político-administrativa e a
participação popular na formulação de políticas públicas setoriais.
Por Venício Lima*, na revista Teoria
e Debate (edição 126)
Na CF88 está prevista a instalação de quinze tipos
de conselhos, diferenciados por sua inserção normativa, vinculação, atuação,
composição, competência e natureza. Regulamentados por lei complementar,
inúmeros funcionam rotineiramente, e esse funcionamento passou a ser condição
legal para o repasse de recursos financeiros da União e dos estados. Outros
cumprem funções relativas à avaliação de instituições públicas.
A diretriz constitucional da descentralização
político-administrativa e da participação popular tem sido diretamente
responsável por resultados positivos na formulação e avaliação de políticas
públicas de setores de direitos fundamentais, há anos.
Apesar de tudo isso, o Decreto nº 8.243 de 23 de
maio, que cria a Política Nacional de Participação Social (PNPS), tem provocado
uma irritada reação das forças conservadoras. Na Câmara dos Deputados, a
oposição faz obstrução da pauta e ameaça impedir a votação de qualquer projeto
de lei até que o decreto seja revogado. Além de líderes partidários, editoriais
e colunistas de jornais tradicionais têm atacado a PNPS.
É interessante observar que os oligopólios de mídia
lideram a reação conservadora: “golpe contra a democracia”, “devastadora
desconstrução da democracia”, “decreto suspeito”, “bolivarismo” e “chavismo”
são algumas das acusações ao decreto.
O porta-voz do tradicionalismo paulista, por
exemplo, afirma em editorial que a presidente “tenta por decreto mudar a ordem
constitucional”, que o decreto “é um conjunto de barbaridades jurídicas” e
“mais um ato inconstitucional”. Por fim, conclama o Congresso Nacional e o
Supremo Tribunal Federal a declararem “a inconstitucionalidade do decreto”.
Não há novidade na reação da grande mídia. O
liberalismo que sempre afirma defender só é democrático no papel e ela tem
apoiado sofismas historicamente utilizados para justificar a exclusão e a
marginalização de importantes segmentos da população brasileira do exercício
republicano da democracia. Mas há, sim, uma especificidade que une a mídia e as
diretrizes constitucionais da descentralização político-administrativa e da
participação popular. Desde a CF88, elas têm sido interditadas no campo da
comunicação social.
Em dezembro de 1991, foi sancionada a Lei nº 8.389,
que regulamentou o Art. 224 da CF e instituiu o Conselho de Comunicação Social
(CCS). Apesar de ser apenas um órgão auxiliar do Congresso, o CCS teve sua
instalação postergada por onze anos, até 2002. Instalado, funcionou durante
quatro e ficou inativo de dezembro de 2006 até julho de 2012, quando foi
reinstalado de forma polêmica e com uma composição distorcida, favorecendo a
representação empresarial.
Por outro lado, desde a promulgação da CF,
obedecendo ao princípio constitucional da simetria, nove das 26 Constituições
estaduais – Alagoas, Amazonas, Bahia, Goiás, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Rio
de Janeiro e Rio Grande do Sul – e a Lei Orgânica do Distrito Federal incluíram
em seus textos a criação dos Conselhos Estaduais de Comunicação Social (Cecs).
Apesar de várias iniciativas tomadas nessas dez unidades da Federação para
regulamentar o que está previsto em suas respectivas Constituições, até hoje os
Cecs somente funcionam nos estados da Bahia e de Alagoas, e neste de maneira
precária e limitada.
A formidável resistência histórica dos oligopólios
de mídia impede, há mais de 25 anos, que normas da CF88 e de Constituições
estaduais sejam cumpridas no campo da comunicação social.
O mesmo O Estado de
S. Paulo publicou editorial, em 2010, no qual afirmava:
As tentativas de controlar os meios
de comunicação no Brasil podem ser abertas ou camufladas. (...) A Assembleia
Legislativa do Ceará aprovou, por unanimidade, o projeto de uma deputada
petista que institui no estado um Conselho de Comunicação Social. (...) O
pretendido conselho cearense (...) quer fiscalizar os meios de comunicação do
estado, criar condições para a "democratização" da informação e
orientar a distribuição das verbas publicitárias estaduais considerando a
"qualidade e pluralismo" da programação dos órgãos da mídia
eletrônica. (...) Para o diretor executivo da Associação Nacional de Jornais
(ANJ), Ricardo Pedreira, a proposta é "obscurantista, autoritária e
inconstitucional". "Quem deve controlar os veículos de comunicação
deve ser a sua audiência", argumenta. "Não cabe a nenhum órgão do
Estado exercer esse papel”.
Não é de surpreender, portanto, que os oligopólios
tradicionais da velha mídia liderem a reação conservadora. Autodenominados
defensores da democracia, rejeitam qualquer interferência popular direta na
formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas referentes às
concessões do serviço público de radiodifusão. Temem que o Decreto nº 8.243
faça a prática da democracia participativa chegar à comunicação social, o que,
até hoje, têm conseguido interditar.
*Venício A. Lima é jornalista e
sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB
(aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros
(Cerbras) da UFMG e organizador de Para Garantir o Direito à Comunicação – A
Lei Argentina, o Relatório Leveson e o HGL da União Europeia, Perseu
Abramo/Maurício Grabois, 2014; entre outros livros
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