Qual o papel do odontólogo na busca do uso
racional de medicamentos? É preciso vencer a visão da indústria que estimula a
automedicação, melhorar a formação e combater a ideia de que o profissional tem
restrições para prescrever.
Autor: Gláucio de Morais e Silva*
O Uso Irracional de Medicamentos tem
suscitado discussão de fundamental importância e grande relevância, pois antes
de tudo, é um problema de saúde pública e fonte de preocupação dos gestores e
farmacoeconomistas de todo o mundo.
No Brasil, pelo menos 35% dos medicamentos
adquiridos utilizados na automedicação. Os medicamentos respondem por 27% das
intoxicações e 16% dos casos de morte por intoxicações. Além disso, segundo a
OMS, no mundo, 50% de todos os medicamentos são prescritos, dispensados ou
usados inadequadamente. De 25 a 70% do gasto em saúde, nos municípios
brasileiros, correspondem a medicamentos, em comparação a menos de 15% nos
países desenvolvidos, como, por exemplo, a França, que gasta 11%. Os hospitais
gastam de 15 a 20% de seus orçamentos para lidar com as complicações causadas
pelo mau uso dos medicamentos, sem esquecer o uso exagerado na aplicação de
injetáveis e uso indiscriminado de antimicrobianos.
A Organização Mundial de Saúde define que há
uso racional de medicamentos quando os pacientes recebem medicamentos
apropriados para suas condições clínicas, em doses adequadas às suas
necessidades individuais, por um período adequado e ao menor custo para si e
para a sua comunidade. Parece simples executar o uso racional de medicamentos,
mas o que se mostra é uma realidade muito diferente.
Apesar da melhora no acesso aos serviços de
saúde na última década, o usuário ainda encontra dificuldades para ser atendido
pelo profissional prescritor (Cirurgião-Dentista e Médico). A indústria, que
com a visão centrada nos lucros investe duas vezes mais em marketing do que em
pesquisa e em desenvolvimento, tem sido um estímulo frequente para o uso
inadequado dos medicamentos. Sobretudo porque tende a ressaltar os benefícios e
omitir ou minimizar os riscos e os possíveis efeitos adversos, dando a
impressão, especialmente ao público leigo, que são produtos inócuos,
influenciando-os a consumir como qualquer outra mercadoria. “Tá com dor de
cabeça? chama a Neosa” diz o comercial que faz referência à dipirona,
analgésico de venda livre e menor segurança clínica disponível no Brasil.
O Cirurgião-Dentista, geralmente, não se
interessa pelas discussões envolvendo o tema prescrição de medicamentos. É o
reflexo de sua formação acadêmica, onde o conteúdo de base teórica em
farmacologia é dissociado das necessidades clínicas. No Sistema Único de Saúde,
não há nenhum interesse dos gestores estaduais e municipais em educação
continuada de seus profissionais.
Há necessidade de considerar vários aspectos
para alcançar os objetivos do uso racional de medicamentos, dentre eles a
orientação e conscientização dos usuários, profissionais de saúde, políticas
públicas, indústria farmacêutica, o comércio, especialmente as ações de
governo.
A principal ação institucional, no Brasil, em
favor do incentivo ao uso racional de medicamentos foi a criação, em 2007, por
meio da Portaria nº 427/2007, do Comitê Nacional para a Promoção do Uso
Racional de Medicamentos pelo Ministério da Saúde do Brasil, atendendo uma recomendação
da Organização Mundial de Saúde (OMS). Compõem esse Comitê várias instituições,
como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), os Conselho Federais
de Odontologia, Medicina, Farmácia, Ministério da Educação e Cultura (MEC),
Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), Conselho Nacional de
Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS), Instituto Brasileiro de Defesa do
Consumidor (IDEC), entre outros. O Comitê possui caráter consultivo e tem por
finalidade orientar e propor ações, estratégias, atividades, identificar e
propor estratégias e mecanismos de articulação, monitoramento e avaliação
direcionados à promoção do uso racional de medicamentos, de acordo com os
princípios e as diretrizes do Sistema Único de Saúde (SUS).
O cirurgião-dentista pode prescrever qualquer
classe de medicamentos que tenha indicação comprovada em odontologia, inclusive
os de uso controlado. Os mais comumente administrados pelos
cirurgiões-dentistas são anti-inflamatórios, analgésicos e antimicrobianos, exigindo,
entretanto, que profissional tenha conhecimento farmacológico da medicação
prescrita, bem como seus adversos, possíveis interações, indicações e
contraindicações.
É comum se ter notícias de colegas que
tiveram suas prescrições não dispensadas na farmácia pelo farmacêutico, sob a
alegação de que “o dentista não pode prescrever esse ou aquele medicamento”,
especialmente os de controle, às vezes por desconhecimento do profissional
farmacêutico sobre os medicamentos que, embora não sejam fármacos usualmente
prescritos pelo Cirurgião-dentista, têm indicação em algumas situações
especiais.
Em primeiro lugar, vejamos o suporte legal
que confere legitimidade à prescrição: A prescrição de medicamentos pelo
Cirurgião-Dentista é regulamentada pela Lei 5.081, de 24 de agosto de 1966, a
qual determina, no artigo 6, inciso I: “que o profissional deve praticar todos
os atos pertinentes à Odontologia, decorrentes de conhecimentos adquiridos em
curso regular ou em cursos de pós-graduação” e no inciso II: “que compete aos
Cirurgiões-Dentistas prescrever e aplicar especialidades farmacêuticas de uso
interno e externo, indicadas em Odontologia”. O inciso VIII ainda afirma que é
direito do Cirurgião-Dentista“prescrever e aplicar medicação de urgência no
caso de acidentes graves que comprometam a vida e a saúde do paciente”.
Conforme disposto na Portaria SVS/MS n.º
344/98, o cirurgião-dentista somente pode prescrever substâncias e medicamentos
sujeitos ao controle especial para uso odontológico (artigo 38 e 55, § 1º), ou
seja, a portaria permite aos dentistas que prescrevam tanto na Notificação de
Receita A (amarelo) e B (azul) como na Receita de Controle Especial.
Não existe uma lista do que deve ou não ser
prescrito, criar listas de restrições para prescrição pelo odontólogo seria
desconsiderar os rápidos avanços da ciência, pois o medicamento que hoje não
tem indicação em odontologia, num futuro poderá ter, exemplo disso é a talidomida,
antes sem indicação em odontologia, atualmente indicada, com redução em até 90%
nos casos de aftas e recorrentes em pacientes imunossuprimidos e nas aftas
complexas causadas pela doença de Behçet. Portanto, não é o medicamento em si
que é permitido ou não, mas o uso a que ele se destina.
Não há justificativa para um
cirurgião-dentista prescrever, por exemplo, medicamentos para doença de
Parkinson ou mal de Alzheimer, tratar obesidade (anorexígenos), anabolizantes,
déficit de atenção com hiperatividade, depressão ou epilepsia, tratar a
diabetes ou hipertensão.
Os principais fármacos sujeitos a controle,
os quais o cirurgião-dentista pode utilizar no seu arsenal terapêutico são:
Analgésicos Opióides que podem ser agonistas fracos (codeína, tramadol, propoxifeno,
etc.), utilizados em dores de moderadas a intensas causadas por pós-operatório
nas cirurgias orais menores e extra-orais; e potentes (morfina), de boa
eficácia no tratamento de pacientes com dor oncológica, mista ou neuropática.
Os benzodiazepínicos utilizados (alprazolam,
bromazepam e diazepam, etc.), que apresentam ação ansiolítica, hipnótica e
mio-relaxante, objetivando realizar sedação consciente, indicados em pacientes
acometidos de intensa ansiedade por ocasião do atendimento.
Os antidepressivos (amitriptilina,
imipramina, desipramina, paroxetina, fluoxetina, mianserina, dexepina) e
anticonvulsivantes (fenitoína, ácido valproico, topiramato, lamotrigina,
gabapentina, carbamazepina, etc.) em dores neuropáticas (neuralgia do trigêmeo,
neuropatia pós-traumática, dores pós-herpética), doenças crônicas com disfunção
da articulação temporomandibular (ATM), síndrome da ardência bucal e dores
oncológicas, entre outras. Indicações sempre embasadas em judiciosa anamnese,
diagnóstico preciso, individualizando a conduta no manejo do paciente e bom
senso por parte do profissional.
A lei nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973 que
dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos
farmacêuticos e correlatos, capítulo VI - Do Receituário no art. 41 determina:
“Quando a dosagem do medicamento prescrito ultrapassar os limites
farmacológicos ou a prescrição apresentar incompatibilidades, o responsável
técnico pelo estabelecimento solicitará confirmação expressa ao profissional
que a prescreveu”. Estes esclarecimentos podem ser obtidos pelo telefone ou por
escrito, ou através do Conselho Regional de Odontologia, que ouvirá o
profissional e emitirá parecer.
Recusar-se a dispensar o medicamento ao
paciente, sem base na legislação ou sem consulta ao profissional prescritor
pode representar grave infração ética ao farmacêutico, além de repercutir
negativamente na relação paciente-CD, representando ainda um dano maior ao
paciente, pois este não poderá utilizar medicação recomendada, restando prejudicado
o tratamento e possibilidade de exacerbação dos sintomas.
*Mestrado
em Química em sistemas de liberação controlada de fármacos (Drug delivery
system) pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Representante
do Conselho Federal de Odontologia (CFO) no Comitê Nacional para Promoção do
Uso Racional de Medicamentos do Ministério da Saúde (MS)2013-2014. Presidente
do Conselho Regional de Odontologia do Rio Grande do Norte (CRO-RN). Professor
de Farmacologia Aplicada à Odontologia da Escola de Aperfeiçoamento
Profissional (EAP) da Associação Brasileira de Odontologia-Seção RN.
Disponível em: http://www.cntu.org.br/cntu/artigos/prescricao-racional-de-medicamentos-em-odontologia
Este Blog transcreveu este artigo na
íntegra de: http://marcoaureliofarma.blogspot.com.br/2014/07/prescricao-racional-de-medicamentos-em.html
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