segunda-feira, 14 de março de 2011

"Crueldade em nome da ciência". Merece uma reflexão.


Crueldade em nome da ciência
Mike Stobbe
Publicação: 13 de Março de 2011 às 00:00
Associated Press


Atlanta (AE) - Por mais chocante que possa ser, médicos do governo norte-americano já acreditaram que era correto fazer experiências em pessoas com algum tipo de deficiência e com prisioneiros. Tais experimentos incluíam injetar o vírus da hepatite em pacientes com problemas mentais em Connecticut, espirrar o vírus de uma gripe pandêmica nos narizes de prisioneiros em Maryland e introduzir células cancerosas em pacientes cronicamente doentes num hospital de Nova York.  Muitas dessas histórias horríveis têm entre 40 e 80 anos de idade, mas foram o pano de fundo de uma reunião realizada em Washington recentemente por uma comissão presidencial de bioética.

A decisão foi tomada depois de um pedido de desculpas do governo, feito no outono do ano passado (no hemisfério norte) pelo fato de médicos federais dos EUA terem infectado prisioneiros e pacientes com doenças mentais na Guatemala com a bactéria da sífilis 65 anos atrás. Funcionários norte-americanos também reconheceram que ocorreram dezenas de experiências semelhantes nos Estados Unidos - estudos que geralmente envolviam adoecer pessoas saudáveis. Uma ampla revisão feita pela Associated Press em publicações médicas e em clippings com décadas de existência mostraram a existência de mais de 40 estudos deste tipo.

Na melhor das hipóteses, estas eram pesquisas para tratamentos que salvariam vidas, na pior, algumas podem ser consideradas experimentos realizados apenas para satisfazer a curiosidade de alguém, que afetaram pessoas e não forneceram nenhum resultado útil.

Inevitavelmente, eles serão comparados ao conhecido estudo Tuskegee sobre a sífilis. Neste episódio, funcionários médicos norte-americanos acompanharam 600 homens negros do Alabama que já tinham sífilis, mas não deram a eles o tratamento adequado mesmo depois de a penicilina ter se tornado um medicamento disponível. Esses estudos foram os piores em pelo menos um aspecto: eles violaram o conceito do “primeiro não fazer mal”, um princípio fundamental da medicina cuja aplicação remonta há séculos.

“Quando você inocula uma doença em alguém - mesmo de acordo com os padrões de seu tempo - você cruza a importante norma ética da profissão”, disse Arthur Caplan, diretor do Centro de Bioética da Universidade da Pensilvânia. Alguns desses estudos, a maioria realizada entre as décadas de 1940 e 1960, aparentemente não foram cobertos pela mídia. Outros foram divulgados, mas o foco estava na promessa de novas e duradouras curas, o que ofuscou a questão do tratamento dispensado às pessoas sujeitas aos testes.

As atitudes em relação às pesquisas médicas eram diferentes na época. Doenças infecciosas matavam muito mais pessoas anos atrás e os médicos trabalhavam com urgência para inventar e testar medicamentos. Muitos pesquisadores importantes acreditavam que era legítimo fazer experiências com pessoas que não tinham amplos direitos perante a sociedade - como prisioneiros, pacientes com doenças mentais e negros pobres. Era uma atitude em alguns aspectos similar a de médicos nazistas que faziam experiências em judeus. “Havia uma compreensão - que não temos hoje em dia - de que se sacrificar pela nação era importante”, disse Laura Stark, professora assistente de ciência na sociedade da Universidade de Wesleyan, que está escrevendo um livro sobre o assunto.

Estudos levaram à descoberta de vacinas

Uma revisão da AP sobre essas experiências descobriu que um estudo patrocinado com recursos federais iniciado em 1942 injetou uma vacina experimental contra a gripe em pacientes masculinos num hospital psiquiátrico em Ypsilanti, Michigan, então os expôs à gripe meses mais tarde. Um dos coautores do estudo foi o doutor Jonas Salk, que uma década mais tarde se tornou famoso como o inventor da vacina contra a pólio.

Alguns dos homens não conseguiram descrever seus sintomas, o que levantou sérias questões sobre se compreendiam o que estava sendo feito com eles. Um jornal mencionou que os alvos do estudo estavam “senis e debilitados”, mas a matéria rapidamente se voltou aos resultados promissores da pesquisa.

Num estudo realizado com recursos federais nos anos 1940, o conhecido pesquisador doutor W. Paul Havens Jr. expôs homens à hepatite em uma série de experimentos, dentre eles um que usou pacientes de hospitais psiquiátricos em Middletown e Norwich, Connecticut. Havens, especialista em doenças virais de Organização Mundial da Saúde (OMS), foi um dos primeiros cientistas a diferenciar os tipos de hepatite e suas causas. Uma busca em vários arquivos de órgãos de imprensa não encontrou qualquer menção aos estudos com pacientes psiquiátricos, que deixou oito homens saudáveis doentes e não auxiliou na compreensão da doença.

Pesquisadores em meados da década de 1940 estudaram a transmissão de uma implacável doença estomacal ao fazer homens jovens engolirem uma suspensão de fezes sem filtragem. O estudo foi conduzido na Instituição Vocacional do Estado de Nova York, uma prisão reformatório em West Coxsackie. O objetivo era verificar como a doença se espalhava dessa forma na comparação com dispersar os germes no ar e fazer com que os “pesquisados” inalassem esse ar. Engolir era a forma mais efetiva de espalhar a doença, concluíram os pesquisadores. O estudo não explica se os homens receberam alguma recompensa pela terrível tarefa.

Um estudo da Universidade de Minnesota no final da décadas de 1940 injetou malária em 11 servidores públicos voluntários e os deixou sem comida por cinco dias. Alguns também foram obrigados a realizar trabalhos pesados e esses homens perderam em média 6 quilos. Eles foram tratados com sulfato de quinina. Um dos autores da pesquisa foiAncel Keys, um conhecido cientista da área de nutrição que desenvolveu as K-rations, a alimentação individual para os soldados durante a Segunda Guerra, e a conhecida dieta do Mediterrâneo. Mas uma busca em vários arquivos de mídia não encontrou qualquer menção ao estudo.

Em 1957, quando a pandemia de gripe asiática estava se espalhando, pesquisadores federais espirraram o vírus nos narizes de 23 prisioneiros da Prisão Patuxent em Jessup, Maryland, para comparar suas reações com as de 32 detentos que haviam recebido uma nova vacina.

Em 1950, pesquisadores do governo tentaram infectar cerca de duas dezenas de prisioneiros voluntários com gonorreia, usando dois métodos diferentes num experimento numa penitenciária federal em Atlanta. A bactéria foi injetada diretamente no trato urinário pelo pênis, segundo os registros.

Prisioneiros foram usados como cobaias de laboratório

Embora as pessoas participantes dos estudos sejam geralmente descritas como voluntárias, historiadores e especialistas em ética questionam se essas pessoas compreendiam o que seria feito com elas e a razão dos testes, ou se chegaram a ser coagidas.  Há muito tempo prisioneiros têm sido vítimas em nome da ciência. Em 1915, o médico norte-americano Joseph Goldberger, na época a serviço do governo e atualmente conhecido como um herói - recrutou prisioneiros para serem tratados com alimentação especial para provar sua teoria de que a pelagra (deficiência de niacina, caracterizada por produzir alterações cutâneas, gastrointestinais e também cerebrais) era causada por deficiência na alimentação. Os participantes foram perdoados por seus crimes.

Mas estudos nos quais prisioneiros eram usados como “cobaias” eram incomuns nas primeiras décadas do século 20 e geralmente eram realizados por pesquisadores considerados excêntricos até mesmo para os padrões da época. Um deles foi o doutor L.L. Stanley, médico residente na prisão San Quentin, na Califórnia, que por volta de 1920 tentou tratar homens velhos e “desvitalizados” ao implantar neles testículos de boi e de prisioneiros recém executados.

Os jornais escreveram sobre os experimentos de Stanley, mas a falta de indignação é impressionante. “Entrar na penitenciária de San Quentin é como ver a fonte da juventude, uma instituição onde os anos voltaram para homens com problemas mentais e com falta de vitalidade, onde os passos voltam a ser firmes, a inteligência volta ao cérebro, o vigor aos músculos e a ambição ao espírito. Tudo isso foi feito e está sendo feito...por um cirurgião com um bisturi.” Assim começa uma matéria publicada em novembro de 1919 pelo The Washington Post.

No período da Segunda Guerra, prisioneiros foram chamados a auxiliar nos esforços de guerra participando de estudos que pudessem ajudar as tropas. Por exemplo, uma série de estudos sobre malária na Penitenciária Stateville, em Illinois e em outras duas prisões, tiveram como objetivo testar drogas contra a doença que pudessem ajudar os soldados que lutavam no Pacífico. Foi por volta dessa época que os processos contra os médicos nazistas em 1947 levaram ao “código de Nuremberg”, uma série de regras internacionais para proteger seres humanos em pesquisas. Muitos médicos norte-americanos simplesmente ignoraram as regras, argumentando que elas se aplicavam às atrocidades cometidas pelos nazistas e não à medicina norte-americana.

O final dos anos 1940 e os anos de 1950 testemunharam um enorme crescimento do setor farmacêutico e da indústria da saúde nos Estados Unidos, acompanhado por uma explosão dos experimentos com prisioneiros patrocinados tanto pelo governo quanto pelas corporações. Até a década de 1960, pelo menos metade dos Estados permitiam que prisioneiros fossem usados como cobaias.

Mas dois estudos na década de 1960 se tornaram pontos importantes na mudança da atitude do público em relação à forma como essas pessoas eram tratadas. O primeiro se tornou conhecido em 1963. Pesquisadores injetaram células cancerosas em 19 pacientes idosos e debilitados do Hospital Judaico de Doenças Crônicas em Nova York, localizado no Brooklyn, para ver se seus corpos as rejeitariam. O diretor do hospital disse que os pacientes não receberam informações de que células cancerosas haviam sido injetadas em seus corpos porque não havia necessidade, já que as células eram consideradas inofensivas.

Experimento era considerado escandaloso

No início dos anos 1970, até mesmo experimentos envolvendo prisioneiros eram considerados escandalosos. Numa audiência no Congresso realizada em 1973 e amplamente coberta pela mídia, representantes da indústria farmacêutica reconheceram que usavam prisioneiros para os testes porque eles eram mais baratos do que chimpanzés.

A prisão Holmesburg, na Filadélfia, realizou vários experimentos médicos com prisioneiros. Algumas das vítimas ainda estão vivas para falar sobre o assunto. Edward “Yusef” Anthony, descrito num livro sobre os estudos, diz que concordou em ter uma camada da pele de suas costas retirada e sobre o ferimento foram colocados produtos químicos para testar um medicamento. Ele entrou na pesquisa em troca de dinheiro para comprar cigarros na prisão. “Eu disse ‘meu Deus, minhas costas estão queimando! Tire isso de mim’”, declarou Anthony em entrevista à Associated Press, ao se lembrar do início de semanas de coceiras intensas e dores agonizantes.

O governo respondeu com reformas. Dentre elas a decisão do U.S. Bureau of Prisons que em meados da década de 1970 proibiu a realização de todas as pesquisas de novos medicamentos, realizadas por empresas farmacêuticas e outras agências, em prisões federais. Como o suprimento de prisioneiros e pacientes com problemas psiquiátricos secou, os pesquisadores passaram a olhar para outros países.

Fazia sentido. Experiências clínicas podiam ser feitas de forma mais barata e com menos regras. E era fácil encontrar pacientes que não estavam tomando qualquer medicamento, um fator que pode complicar os testes de outras drogas. Outras diretrizes éticas foram promulgadas e poucos acreditam que outro estudo como o realizado na Guatemala poderia acontecer atualmente.

Ainda assim, nos últimos 15 anos, dois estudos internacionais provocaram ultraje. Um tem ligação com Tuskegee. Médicos patrocinados pelo governo norte-americano não medicaram com AZT mulheres grávidas infectadas com o HIV durante um estudo realizado em Uganda, apesar do fato de que a medida teria protegido seus recém-nascidos. Funcionários de saúde dos Estados Unidos argumentaram que o estudo responderia perguntas sobre o uso do AZT no mundo em desenvolvimento.

Outro estudo, conduzido pela Pfizer, tratou crianças com meningite com um antibiótico chamado Trovan na Nigéria, apesar de haver dúvidas sobre sua eficácia do medicamento com combate à doença. Críticos responsabilizam o experimento pelas mortes de 11 crianças e por deixar várias com deficiências. A Pfizer fez um acordo com o governo nigeriano no valor de US$ 75 milhões, mas negou ter cometido qualquer delito.

No ano passado, o inspetor-geral do Departamento de Saúde de Serviços Humanos dos Estados Unidos relatou que entre 40% e 65% dos estudos clínicos de produtos médicos regulados por leis federais foram feitos em outros países em 2008 e que a proporção provavelmente aumentou. O relatório também destacou que reguladores norte-americanos inspecionaram menos de 1% dos locais de testes clínicos no exterior.

Monitorar pesquisas é complicado e regras muito rígida poderiam adiar o desenvolvimento de novos medicamentos. Mas geralmente é difícil obter informações sobre testes internacionais, disse o doutor Kevin Schulman.
Fonte: http://tribunadonorte.com.br/noticia/crueldade-em-nome-da-ciencia/175303

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