Por André
Luis Melo
No mundo há 2.200 faculdades
de direito, destas 1.200 estão no Brasil. Ou seja, mais da metade das
faculdades de direito do mundo estão no país, mas alguns alegam que falta
assistência jurídica no Brasil. Seria como alegar que mais da metade das
faculdades de medicina do mundo estão no Brasil, mas ainda falta assistência
médica.
De fato, não são faculdades de
advocacia, ou seja, nem todos formados em Direito serão advogados. Mas, mesmo
assim, temos quase 800 mil advogados e quase cinco milhões de bacharéis em
direito formados. Contudo, mesmo com a triagem do Exame da OAB temos um
advogado para 250 habitantes no Brasil. Apesar disso ainda alega-se que falta
assistência jurídica no Brasil. Como explicar isto?
Ocorre que há fortes
interesses e lobbies para fomentar este mercado de serviço de assistência
jurídica. De um lado temos a tabela de honorários mínimos da OAB juntamente com
a proibição de se usar publicidade em rádio e TV e restringir nos demais
veículos. Estas normas são impostas pela OAB com base em atos administrativos,
sem previsão legal, embora não tenha poder resolutivo, apenas normativo. A OAB
elaborou o seu “código de ética” e criou obrigações e vedações sem previsão
legal, ou seja, revogou a norma constitucional que estabelece que ninguém pode ser
obrigado a fazer ou deixar de fazer algo em virtude de lei (artigo 5º, II, da
CF).
Com essa medida os escritórios
mais tradicionais e que ocupam cargos estratégicos em órgãos da OAB elaboraram
regras que impedem o livre acesso ao mercado de trabalho, porém asseguram a
sobrevivência dos escritórios mais tradicionais sem concorrência dos mais
jovens, pois isso é considerado como “antiético” . Em suma, fiscalizam valores
cobrados em vez de qualidade do trabalho.
Isso acaba prejudicando o
acesso da população aos serviços advocatícios, pois é uma barreira. É claro que
se o trabalho do advogado está comprovadamente ruim, a OAB pode puni-lo, mas
não se pode presumir que o valor seja a prova da qualidade. Nem mesmo vedar
publicidade em razão da liberdade de informação.
Seria como se a TAM e a GOL,
já conhecidas do público, e que integram majoritariamente a OAB (Ordem da
Aviação Brasileira), decidissem que não se pode mais fazer publicidade, e
fixariam o preço mínimo das passagens. Com isso, as empresas menores praticamente
seriam extintas, pois não seriam conhecidas, uma vez que as pessoas conheciam
mais as duas mais tradicionais.
Um médico recém formado pode
cobrar o valor que quiser pela consulta e anunciar em todos os veículos de
comunicação, desde que não seja publicidade abusiva, o que é prudente. Mas, no
caso da advocacia um jovem advogado tem que cobrar a tabela da OAB, sob pena de
infração profissional, conforme artigo 41 do Código de Ética, além de não poder
anunciar em TV e rádio. E nos demais veículos de comunicação pode anunciar, em
regra, apenas em veículos destinados para outros advogados e não para a
comunidade.
Além disso, se montar uma ONG
para prestar assistência jurídica, também tem vedação em normas administrativas
da OAB, a qual presume captação de clientes, mesmo sem provas cabais, o que
entende ser vedado. É a presunção da culpa, e nesse ponto, a OAB que sempre
defendeu a presunção da inocência inverte o seu pensamento. Uma ONG de defesa
dos direitos humanos não pode prestar assistência jurídica nem informação à
população?
Em razão dessas regras
administrativas, o jovem advogado não consegue adentrar no mercado de trabalho
e então apenas lhe resta estudar para concurso ou trabalhar em algum escritório
já estruturado. Mas então passa a ser vítima da autofagia profissional, pois
normalmente não existe piso salarial para advogado empregado e para agravar
ainda mais a OAB sem previsão legal criou por ato administrativo a figura do
“advogado associado”, o qual não é empregado nem sócio.
Se o CFM (Conselho Federal de
Medicina) publicar uma tabela de honorários médicos mínimos, é multado e seus
dirigentes são presos sob alegação de infração à ordem econômica e formação de
cartel e quadrilha, mas a OAB pode ter tabela de honorários mínimos para cada
estado (seccional). Alegam que a relação do paciente com o médico é de consumo,
mas com o advogado não, pois advocacia é função social. Não sabia que a
medicina não era uma função social. Ademais, se a advocacia é função social,
logo por isso não pode ter tabela de honorários mínimos e obrigatórios, sob
pena de punição. A Lei 8.906/1994 fala em honorários, mas não tem as expressões
“mínimos” e “ obrigatórios”.
Ainda não caminhamos no Brasil
para os grandes escritórios, os quais podem empregar com planos de carreira. Em
geral, há um trabalho ainda artesanal. Outrossim, nos Conselhos da OAB
prevalecem os advogados patrões (sócios) e os advogados servidores públicos.
Não há espaço para advogados empregados, notadamente, empregados de outros
advogados, muito menos para advogados associados. Logo, as normas não são para
beneficiar essas categorias mais frágeis. Tanto é que a OAB não considera
infração ética contratar advogado (colega) abaixo de um piso salarial razoável,
o qual até pode ser fixado pelas Seccionais.
Se algum advogado desejar
cobrar oficialmente abaixo da tabela de honorários deve pedir autorização, caso
a caso, na sede localizada na capital do estado, a qual não tem prazo para
responder, conforme ato administrativo da OAB, sem previsão legal.
A assistência jurídica
gratuita no Brasil confunde-se com uma espécie de “assistencialismo” jurídico,
em que foca no prestador do serviço e não no usuário. É como se tivéssemos uma
estrutura para defender os baixos, mas não existissem critérios para definir
quem é baixo, logo nem quem é baixo saberia como pedir ou contestar desvios. No
Brasil, a assistência jurídica atende a bel prazer de juízes e advogados
(defensores públicos). O pobre acaba virando apenas um meio de se vender o
serviço e quem define quem é pobre ou não é o prestador de serviço e não o
usuário nem a lei.
Nesse sentido, o Constituinte
criou a Defensoria Pública que teria como missão prestar assistência jurídica
aos carentes. Ocorre que em razão do lobby da corporação e da ligação do
governo federal do PT com sindicatos de servidores públicos vem prevalecendo um
foco na autonomia do prestador do serviço e não na autonomia do usuário,
inclusive com medidas que visam estabelecer uma exclusividade de atendimento,
uma espécie de monopólio.
Em razão disso OAB e
Defensoria iniciaram uma disputa pelas verbas que são destinadas a este serviço
e consequentemente uma discussão para saber quem é o dono dos pobres. A OAB
defende um sistema de “duopólio de pobre” em que Defensoria e Advogados dativos
dividiriam os pobres. Nem mesmo no modelo de advogado dativo há direito do
cidadão escolher o seu advogado na lista, pois há uma disputa entre juízes e
OAB para definir quem nomeia o advogado dativo, inclusive alguns sustentando a
ordem cronológica, tudo para evitar a concorrência e manter redutos de poder,
ainda que isto viole o direito de ampla defesa e escolha por parte do cidadão.
Curiosíssimo é que o discurso
da OAB para questionar várias medidas é no sentido de que “violam o princípio
da confiança entre advogado e cliente”, mas quando se trata do advogado dativo
é normal que a escolha seja por ordem cronológica na lista e não por decisão do
cidadão. Também não se tem exigido a comprovação da carência, e em alguns casos
nem mesmo a declaração de pobreza. Em MG estima-se que em 2012 será pago mais
de um bilhão de reais apenas para pagamento de advogados dativos, mas sem
nenhuma comprovação de carência e sem que o Estado seja intimado no processo
para constatar se o beneficiado é pobre, ou se a matéria é relevante.
Na verdade, os órgãos da OAB
são compostos por advogados com o seu mercado assegurado e que não atuam como
advogado dativo. Logo, não têm muito interesse nesse tema, mas publicamente
alegam estar interessados, pois temem perder votos originários dos pequenos escritórios
e que costumam depender deste serviço de advogado dativo. Os escritórios mais
consagrados temem que os mais novos cresçam rapidamente e adentrem no seu nicho
mais seletivo de clientes concorrendo com os mais tradicionais.
Geralmente em todas as palestras
esses mais tradicionais falam para os mais jovens: “ esperem a sua vez”, ou
seja, “não concorram conosco”.
Nesse caos é comum “justiça
gratuita” para médicos, empresários, juízes, desembargadores, dentistas,
advogados, fazendeiros e outras categorias privilegiadas para o nosso contexto.
Já a Defensoria sustenta que
tem exclusividade, espécie de monopólio, do atendimento jurídico aos carentes,
logo é uma espécie de “dona dos pobres”, ou “senhora dos pobres”, como a
Secretaria de Reforma do Judiciário afirma e acha natural, nem sendo necessário
identificar o que seria carente. Em razão disso é comum ver casos de ações para
impedir que outros segmentos atendam aos carentes, como municípios, ONGs e
terceiros.
Chegamos ao paradoxo de se
permitir a terceirização da execução penal (APACs), ou seja, transferir para
ONGs o poder punitivo do Estado, mas não se poder terceirizar a assistência
jurídica, nem fazer parcerias com outros setores.
Infelizmente, nesse fogo
cruzado das duas Instituições, o que se observa é uma omissão e violação aos
direitos humanos por parte do governo federal, que não estabelece medidas para
descentralizar a assistência jurídica e combater as medidas ilegais que tentam
criar reserva de mercado, violando o direito de escolha.
Além disso, temos a omissão do
MEC que não estabelece políticas para implantação de cursos de Direito nas
regiões mais pobres. Apenas aguarda faculdades protocolarizarem pedidos no
balcão do MEC, as quais apenas querem montarem cursos nas regiões mais ricas. O
ideal seria o MEC levantar os locais com menor número proporcional de advogados
e estimular que se abram cursos de Direito naquela região.
Também há o problema da
reserva do mercado e os lobbies no Legislativo com apoio até de órgãos do
Ministério da Justiça, como no caso da necessidade de advogado para formalizar
divórcio consensual em cartórios extrajudiciais, mesmo sem filhos menores e sem
bens. Ora, qual o risco para o casal que deseja divorciar sem bens e sem filhos
para justificar a assistência jurídica? No entanto, o Ministério da Justiça
apoiou Projeto de Lei para incluir “defensor público” para homologação de
divórcios em lugar de apoiar a exclusão total. Na verdade, nem precisaria
incluir a expressão “defensor público”, pois o termo “advogado” já abrangia
essa situação. No entanto, como não querem ser tratados como advogados, fizeram
essa relevante mudança através da Lei 11.965/2009. Ou seja, a máquina
legislativa foi movimentada apenas para atender aos interesses das corporações
que prestam serviço e não do usuário do serviço.
Seria como se o governo
dissesse aos laboratórios de farmácia que eles iriam definir livremente os seus
preços e se fiscalizarem, e seriam Super Farmacêuticos com reserva de mercado e
poderiam impedir outros de atuarem, e venderiam os seus serviços, mas cobrariam
do Estado sem controle algum, sem necessidade de comprovar carência e com
poderes quase policiais, impedindo ONGs e municípios de colaborarem no serviço.
Tanto monopólio como duopólio
de pobre são absurdos, sendo que o ideal é a criação de uma rede de atendimento
e estimulando medidas inclusive com estímulos tributários e de organização da
sociedade em ONGs para defesas dos seus direitos.
Em suma, não temos falta de
assistência jurídica, mas uma desorganização no sistema em razão de interesses
corporativistas que tentam criar restrições ao mercado como tabela de
honorários, vedação de publicidade, proibição de reorganização e até mesmo uma
política governamental que estimula a criação de reserva de mercado em serviço
essencial, sendo necessária a implantação de uma rede de assistência jurídica
com vários legitimados para assistência jurídica, com comprovação da carência.
André Luis Melo
é promotor de Justiça em Minas Gerais, professor universitário e mestre em
Direito.
Revista Consultor Jurídico, 18
de novembro de 2012
Fonte:
http://www.conjur.com.br/2012-nov-18/andre-melo-interesses-corporativos-criam-restricoes-mercado