Créditos: Marta F. Reis
publicado em 7 Out 2014 - 05:00
Médico dinamarquês tem comparado indústria farmacêutica com a máfia. Defende que os médicos têm de aprender a dizer "não obrigado"
Peter C. Gøtzsche dedicou os últimos anos a estudar
o modus operandi da indústria farmacêutica, onde começou a
carreira como delegado de propaganda. O trabalho resultou num livro nas bancas
há um ano, este Verão publicado em Espanha e prestes a sair em Itália,
Alemanha, Rússia ou Coreia. O i conversou com o médico
dinamarquês que em Setembro apareceu no programa de Jon Stewart. "The
Daily Show" a comparar a indústria com os cartéis de droga. Gøtzsche
afirma que o sector do medicamento é um sistema corrupto que contribui com as
suas omissões e marketing para a morte de milhares de pessoas. No caso da nova
medicação da hepatite C, vê um problema recorrente: explorar ao máximo um
monopólio saqueando o erário público.
O que o levou a escrever este livro?
Fi-lo para acordar as pessoas. Tudo começou no
Verão de 2012, quando decidi fazer uma pesquisa no Google com fraude à frente
do nome das maiores farmacêuticas. Tive 500 mil a 27 milhões de resultados por
cada empresa que pesquisei e fui constatando que os esquemas se repetiam. As
empresas mentem sistematicamente sobre os seus resultados, escondem riscos e
exacerbam benefícios, o que leva as pessoas a pensar que os medicamentos só
trazem benefícios. Reuni uma série de exemplos e informações sobre situações
muito graves, em que inclusive têm sido ocultadas mortes.
No início da sua carreira trabalhou
como delegado de propaganda médica. Recorda-se de se ter sentido enganado?
Numa das empresas em que trabalhei estava
encarregado de vender um novo tipo de antibiótico e numa das campanhas tínhamos
de apresentá-lo como um medicamento mais eficaz contra a sinusite aguda e
informávamos os médicos de que havia um estudo a demonstrar que o fármaco
penetrava melhor na mucosa dos senos nasais do que o que havia até então.
Fiquei perplexo e senti-me até humilhado quando um dos médicos me disse que era
impossível medir a concentração de antibiótico na mucosa nasal.
Escreve que é muito fácil convencer os
médicos a actuar erroneamente.
É a natureza humana. Se a informação que recebem
sobre os medicamentos vem de entidades que até são generosas, lhes oferecem
dinheiro, jantares e até mulheres - há casos em que a indústria chega a pagar
acompanhantes de luxo -, fica-se com um sentimento de lealdade. Todas as
pessoas que lidam com a indústria farmacêutica acabam por ser objecto de algum
tipo de suborno, que tem o intuito de simplesmente as levar a vender mais.
Enquanto médico, alguma vez se sentiu
subornado?
Há 25 anos participei num encontro de um dia em
Paris patrocinado por uma farmacêutica e quando íamos para o jantar deram-me um
envelope. Quando o abri mais tarde tinha uma nota de mil dólares, um valor
absurdo pela presença de um jovem médico dinamarquês.
Esses pagamentos ainda existem?
Tudo o que ajude a vender medicamentos pode
acontecer. Não é preciso ir tão longe, o facto de a indústria pagar viagens a
congressos é uma forma de influenciar.
Mas não é importante ir a congressos,
até para ficar actualizado?
Os médicos não precisam de ir a congressos com
viagens pagas pelas farmacêuticas. Se não têm dinheiro para ir, fiquem em casa.
Podem ler as conclusões em revistas médicas. Têm de aprender a dizer "não,
obrigado". Nos casos em que se justifica irem, por exemplo para
apresentarem trabalhos, não é preciso a viagem ser paga pela indústria. Podem
candidatar- -se a financiamento ou a bolsas.
Ao longo desta investigação, o que é
que mais o perturbou?
Talvez o dado mais assustador tenha sido perceber
que na área da psiquiatria a indústria está a aumentar o risco de suicídio
entre os jovens ao mesmo tempo que diz protegê-los. Pelo menos três grandes
empresas que vendem inibidores selectivos da recaptação de serotonina,
manipularam informação sobre o risco de suicídio. Por outro lado, apesar de nem
todos os casos serem reportados, está demonstrado que os antidepressivos
aumentam o risco de suicídio em particular antes dos 25 anos. Os jovens não
devem tomá--los. Penso que também é perturbador pensar que os efeitos adversos
dos medicamentos são a terceira causa de morte na Europa, depois dos problemas
cardíacos e do cancro, e usamo-lo muitas vezes com pouco critério.
No seu livro descreve a psiquiatria
como o paraíso das farmacêuticas.
Como as definições das perturbações mentais ainda
são pouco claras, é uma área fácil de manipular. Estou convencido que
actualmente os medicamentos e a forma como são usados causam mais mal que bem:
quando muito deviam ser usados em situações agudas e só em alguns doentes, mas
não é isso que acontece.
É muito crítico dos ensaios clínicos.
Não podem ser considerados credíveis a partir do
momento em que não temos acesso a todos os dados, que ficam na posse de quem
tem maiores conflitos de interesses - as empresas interessadas em vender os
seus produtos. Os reguladores estão bloqueados: o que temos neste momento é
semelhante a alguém que se apresenta numa oficina para o seu carro ser avaliado
mas em vez de levar o automóvel para o mecânico fazer as verificações leva os
relatórios que o próprio produziu em casa. Ou um julgamento em que o réu faz
todas as diligências. Permitimos que a indústria farmacêutica enriquecesse
tanto e se tornasse tão poderosa que é muito difícil alterar um sistema
inquinado.
Como se resolve?
Precisamos de uma revolução. Na minha opinião, a
indústria não devia ser autorizada a fazer ensaios dos seus medicamentos.
Idealmente, o desenvolvimento dos medicamentos devia ser um empreendimento
público, assim como o seu marketing. Mas antes de mais os ensaios deviam ser
iniciativas públicas, independentes.
Pagas com que dinheiro?
A indústria pagaria para o seu medicamento ser
avaliado, mas garantir-se-ia independência na análise. Após esses estudos, se
se verificasse que os medicamentos novos não são eficazes, seguros ou
vantajosos, não os comprávamos.
Em Portugal tem havido uma guerra de
forças em torno da nova medicação para a hepatite C. A empresa pediu
inicialmente 48 mil euros por tratamento, preço que o governo diz ser
incomportável. Quem tem razão?
Propostas desse género são extorsão, chantagem e só
resultam de a empresa ter aí um monopólio que quer explorar. Têm a noção de que
é muito difícil um político aparecer na televisão a dizer que é impossível
tratar todos os doentes com hepatite C porque não há dinheiro e cobrará o
máximo que conseguir.
O medicamento não é benéfico?
Não estudei esse medicamento em particular, mas o
que dita o preço nunca é isso - é a empresa ter um monopólio.
Um dos argumentos é que é preciso pagar
o investimento.
Esse argumento é uma treta. É um dos mitos que
abordo no livro, o de que os medicamentos são tão caros por causa dos custos
elevados de investigação e produção. Costumamos ouvir dizer que comercializar
um novo medicamento pressupõe um investimento de 800 milhões de dólares mas
este número é falso, resulta de análises financeiras das próprias empresas. A
zidovuvina, o primeiro medicamento contra a sida que saiu para o mercado, foi
sintetizada por um centro da Fundação contra o Cancro no Michigan em 1964. A farmacêutica
que o desenvolveu gastou muito mas mesmo assim quando foi posto à venda em 1984
o custo por doente era de 10 mil dólares. Os contribuintes patrocinam a
indústria de muitas formas, muitas vezes porque a investigação básica nasce nas
universidades e depois porque os remédios são comparticipados. Os preços a que
a nova medicação chega ao mercado são semelhantes a uma situação de resgate de
reféns.
Como se contraria essa realidade?
Os governos não devem aprovar novos medicamentos
sem negociar preços e se for muito alto devem dizer não.
Como se explica isso aos doentes?
Esse é o maior problema e muitas associações de
doentes acabam por ser manipuladas pela indústria da mesma forma que os
profissionais de saúde. Penso que a solução está em a União Europeia unir--se
para dizer basta pois aí terá uma posição de força: se todos dissessem não, a
empresa teria de baixar preços. Isto tem de ser claro para os doentes, de outra
forma os gastos serão cada vez mais insustentáveis. Estou convencido de que se
não tomássemos tantos medicamentos de utilidade duvidosa e se a medicação
tivesse o preço adequado a despesa com medicamentos podia baixar 90% e teríamos
doentes mais saudáveis e a viver mais tempo.
Portugal fez recentemente uma proposta
nesse sentido na UE, para o preço da medicação da hepatite C ser proporcional
ao do Egipto, onde é vendido por 700 dólares. Mas entretanto Espanha já
comparticipou a 25 mil euros...
Se não há acordo, porque é que não se compra o
medicamento no Egipto? Acho que é a pergunta a fazer.
Enquanto médico, contrariava os pedidos
de remédios por parte dos doentes?
Penso que foi o meu maior contributo na medicina
interna, sobretudo nos idosos que muitas vezes tomam vários medicamentos ao
mesmo tempo e que comprometem as suas funções cognitivas. Quando paravam,
rejuvenesciam. Os doentes precisam de ser mais sensibilizados: não devem fazer
parte de associações que aceitem favores da indústria, devem perguntar aos
médicos se recebem dinheiro ou outros benefícios da indústria e em caso afirmativo
mudar de médico. Não devem tomar medicamentos a menos que seja indispensável e,
quando é possível, devem optar por substâncias no mercado há pelo menos sete
anos, dado que é neste período geralmente que se verificam riscos e acabam por
ser retirados.
No seu livro conclui que as
farmacêuticas chegam a ser piores que a máfia.
Existe nitidamente uma situação de crime
organizado. Não estudei todas as empresas mas as maiores fazem todas o mesmo:
escondem riscos e exageram benefícios, mentem no marketing e pagam a
concorrentes para manter monopólios. É um sistema corrupto.
Países mais pequenos como Portugal
estão mais imunes a esses lóbis?
Não creio que haja diferenças, o dinheiro da
indústria vem de todo o lado.
Mas é muito mais comum ouvirmos esses
casos de fraude nos EUA.
São melhores a investigar os escândalos e têm mais
recursos para compensar os insiders que denunciam. Penso que devíamos ter mais
essa postura na Europa.
Tem sido alvo de ameaças ou
intimidações por causa destas declarações?
Não.
Isso não o surpreende?
Não. Sabem que o que digo está muito bem
documentado. Quando não se consegue argumentar contra uma verdade
inconveniente, o melhor é ficar calado.