Os médicos que prescrevem os
medicamentos desconhecem que estes não produzem os efeitos que afirmam. Os
pacientes também não sabem. As farmacêuticas sabem-no muito bem, mas não dizem.
Por Ben Goldacre.
Artigo | 17 Janeiro, 2014 - 20:31
Já prescrevi a reboxetina. Outros medicamentos
nada tinham feito pelo meu paciente, de forma que queríamos experimentar algo
novo. Tinha lido os dados do ensaio antes de passar a receita, e só encontrei
provas bem desenhadas, imparciais e com resultados muito positivos. A
reboxetina foi melhor que o placebo, e tão boa quanto qualquer outro
antidepressivo em comparação um a um. O seu uso é aprovado pela Agência
Reguladora de Medicamentos e Produtos Sanitários (MHRA), que regula todos os
fármacos no Reino Unido. Milhões de doses são anualmente prescritas em todo o
mundo. A Rreboxetina aparecia claramente como um tratamento seguro e eficaz. O
paciente e eu discutimos brevemente as evidências, e concluí que era o
tratamento adequado para fazer outra tentativa. Assinei uma receita.
Mas ambos tínhamos sido enganados. Em outubro de
2010, um grupo de pesquisadores finalmente foi capaz de reunir todos os dados
que haviam sido recolhidos para a reboxetina, tanto dos ensaios publicados como
dos que nunca tinham aparecido em publicações académicas. Quando todos estes
dados se juntaram, produziu-se uma imagem impactante. Tinham sido realizados
sete ensaios comparando a reboxetina e um placebo. Só um, levado a cabo em 254
pacientes, teve um resultado claro, positivo, e foi publicado numa revista
académica para a leitura por médicos e pesquisadores. Mas outros seis ensaios
foram realizados em quase dez vezes mais pacientes. Todos mostraram que a
reboxetina não era melhor que uma pílula de açúcar. Nenhum foi publicado. Eu
não tinha nem ideia de que existiam.
Dados não publicados, efeitos secundários
ocultados
Mas há pior. Os ensaios que compararam a
reboxetina a outros fármacos mostraram exatamente a mesma situação: três pequenos
estudos, com 507 pacientes ao todo, mostraram que a reboxetina foi tão boa como
qualquer outro fármaco. Todos foram publicados. Mas os dados de 1657 pacientes
ficaram sem publicar, e estes evidenciaram que os pacientes tratados com
reboxetina tiveram piores resultados que os que tomavam outros fármacos. Se
tudo isto não fosse suficiente, mencionavam também efeitos secundários. O
fármaco parecia bom nos ensaios que apareceram na literatura académica, mas
quando vimos os estudos não publicados, descobrimos que os pacientes que
estavam a tomar reboxetina tinham mais probabilidades de sofrer efeitos
secundários, mais probabilidades de abandonar a toma do fármaco e maior
probabilidade de sair do ensaio devido aos efeitos secundários, do que os
pacientes que tomavam algum dos fármacos competidores.
Tão eficaz quanto uma pílula de açúcar
Fiz todo o que se supõe que um médico deve
fazer. Li todos os documentos, avaliei-os criticamente; eu compreendia-os,
comentei-os com o paciente e tomámos uma decisão conjunta baseada na evidência.
Nos dados publicados, a reboxetina era um fármaco seguro e eficaz. Na
realidade, não era melhor do que uma pílula de açúcar e, pior ainda, com mais
riscos que benefícios. Como médico, fiz algo que, tendo em conta toda a
evidência disponível, prejudicou o meu paciente, simplesmente porque os dados
pouco positivos não foram publicados.
Nesta situação, ninguém infringiu qualquer lei,
a reboxetina está ainda no mercado e o sistema que permitiu que tudo isto
sucedesse ainda está a funcionar, para todos os fármacos, em todos os países do
mundo. Os dados negativos vão-se perdendo, para todos os tratamentos, em todas
as áreas da ciência. Os reguladores e os organismos profissionais, a quem
razoavelmente caberia esperar que acabassem com estas práticas, falharam. Estes
problemas foram afastados do escrutínio público porque são demasiado complexos
para serem apreendidos num estalar de dedos. É por isso que os políticos não
têm feito muito, pelo menos em parte; mas também por isso convém explicar os
detalhes. As pessoas nas quais deveríamos ter confiado para solucionar estes
problemas falharam e, como é preciso compreender um problema corretamente para
poder solucioná-lo, há algumas coisas que é preciso saber.
Imagens distorcidas
Os mesmos que fabricam os medicamentos
avaliam-nos em ensaios clínicos não muito bem desenhados, com mostras
desesperadamente pequenas de pacientes, frequentemente raros e não
representativos, e os resultados são analisados utilizando técnicas
propositadamente defeituosas, de tal maneira que exageram os benefícios dos
tratamentos. Como é de esperar, estes estudos tendem a produzir resultados que
favorecem o fabricante. Quando os ensaios chegam a resultados que as empresas
não gostam, têm todo o direito de os esconder dos médicos e dos pacientes, e
assim só se vê uma imagem distorcida dos verdadeiros efeitos de um fármaco. Os
reguladores veem a maioria dos dados do ensaio, mas só desde as fases iniciais
da vida de um fármaco, e ainda assim não compartilham esta informação com os
médicos ou os pacientes, nem com outros escritórios governamentais. Esta
evidência distorcida comunica-se e aplica-se então de uma maneira distorcida.
Ensaios feitos por pessoas que trabalham em
segredo para as farmacêuticas
Nos seus 40 anos de prática depois de sair da
faculdade de medicina, os médicos ouvem sobre o que funciona “ad hoc”, sobre os
representantes de vendas, colegas e revistas. Mas os colegas e as revistas
podem ser pagos pelas companhias farmacêuticas – muitas vezes de forma oculta.
E também o são os grupos de pacientes. E, por último, os ensaios académicos,
que toda a gente pensa que são objetivos, com frequência são planeados e
escritos por pessoas que em segredo trabalham diretamente para as empresas, sem
o revelar. Às vezes revistas académicas inteiras são propriedade de uma empresa
farmacêutica. Além de tudo isto, para vários dos problemas mais importantes e
duradouros na medicina, não temos ideia de qual é o melhor tratamento, porque
ninguém tem interesses financeiros de levar a cabo um estudo.
Este artigo é a primeira parte de um resumo do
livro “Bad Pharma”, de Ben Goldacre, publicado pela Fourth Estate e pela
Bizâncio, em Portugal (2013).
Publicado em Viento Sur, com subtítulos da
responsabilidade da redação do Esquerda.net
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Opinião de C&T: O conteúdo acima é uma republicação de matéria de www.esquerda.net, não somos autores da mesma, portanto seu conteúdo nós não nos responsabilizamos.
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