Com a
liberação da maconha, o presidente uruguaio cada vez mais se desprende do
atraso latino-americano
Em um episódio de 1995 do desenho animado Os
Simpsons, Homer, o patriarca da família e símbolo da classe média
americana, localiza, em um globo terrestre, o pequeno Uruguai, ao sul da
América do Sul, e erra a pronúncia do país: “You Are Gay”. Quase duas décadas
mais tarde e após três anos de um governo de esquerda, o ex-guerrilheiro
tupamaro José “Pepe” Mujica deu a nosso vizinho de 3,4 milhões de habitantes
tanto destaque no mapa que até Homer, sinônimo no Brasil do telespectador médio
do Jornal Nacional da Rede Globo, seria hoje capaz de reconhecê-lo.
Mujica é, segundo definições mundo afora, “o
político mais incrível”, “o líder que faz sonhar”, “o presidente mais pobre do
planeta”, que abriu mão de 90% do salário e preferiu morar em sua chácara em
vez de na residência oficial. A revista americana Foreign Policy o
listou entre os cem pensadores mais importantes de 2013, por redefinir o papel
da esquerda no mundo.
“Quando o presidente venezuelano Hugo Chávez
morreu, em março, muitos acharam que o crescente movimento de esquerda
latino-americana morreria com esse populismo de camisas vermelhas. Poucos meses
depois, entretanto, o movimento encontrou um novo e pouco provável guia em José
Mujica, presidente do Uruguai”, anota a publicação. “A controversa agenda de
Mujica, que o fez ganhar tanto amigos quanto detratores, gerou um novo debate
sobre o futuro da esquerda latino-americana. Ao estabelecer uma ruptura entre o
claro antiamericanismo de Chávez e também com o profundo conservadorismo social
da América Latina, Mujica aponta para um possível caminho futuro para seus
camaradas.”
Pepe despertou uma verdadeira Mujicamania até mesmo
entre quem tenta esquecer seu passado de guerrilheiro que sequestrou e assaltou
bancos durante a ditadura uruguaia e que passou 10 de seus 14 anos de prisão na
solitária, edulcoração semelhante à produzida pela mídia mundial em relação a
Nelson Mandela (a propósito, ler a análise de Antonio Luiz Coelho da Costa a
partir da página 54).
Mujica não dá, porém, sinais de pretender interromper os seus projetos “revolucionários”, em nome da conciliação ou da governabilidade. Na campanha presidencial, nunca amenizou o discurso para conquistar ou acalmar o eleitorado conservador. “Se chego a segurar o manche, vou expor minhas ideias. Vou propô-las e, se não aceitarem, que me apresentem outro projeto”, disse, em longa entrevista ao veterano jornalista uruguaio Samuel Blixen no livro El Sueño de Pepe. “Nós, os esquerdistas, vivemos tempo demais prisioneiros de um marxismo mecanicista, que não é culpa do velho Marx, mas do que veio depois.”
Mujica não dá, porém, sinais de pretender interromper os seus projetos “revolucionários”, em nome da conciliação ou da governabilidade. Na campanha presidencial, nunca amenizou o discurso para conquistar ou acalmar o eleitorado conservador. “Se chego a segurar o manche, vou expor minhas ideias. Vou propô-las e, se não aceitarem, que me apresentem outro projeto”, disse, em longa entrevista ao veterano jornalista uruguaio Samuel Blixen no livro El Sueño de Pepe. “Nós, os esquerdistas, vivemos tempo demais prisioneiros de um marxismo mecanicista, que não é culpa do velho Marx, mas do que veio depois.”
Postas em prática, as ideias surpreendem o mundo
pelo viés progressista. Enquanto, no Brasil, religiosos chantageiam e
encurralam o governo, na terra de Mujica, só neste ano, foram legalizados o
aborto até o terceiro mês e o casamento gay. Para culminar, a legalização da
maconha, aprovada pelo Senado por 16 votos a favor e 13 contra na terça-feira
10 e que agora vai à sanção do presidente, é uma experiência única. O Estado
controlará a produção e a comercialização em farmácias a 1 dólar o grama. Os
usuários poderão cultivar até três pés da planta em suas próprias casas e
organizar cooperativas de consumo.
O objetivo é acabar com o tráfico da erva no Uruguai e reduzir a criminalidade. Segundo o presidente, a maconha não será legalizada, mas regulada, em substituição a um mercado à margem das regras. A oposição criticou a transformação do país em um “laboratório” e ameaçava recorrer a um referendo para derrubar o projeto. Rival de Mujica em 2009, o ex-presidente Luis Alberto Lacalle ironizou e sugeriu a criação de uma “Petrobras da erva”.
O objetivo é acabar com o tráfico da erva no Uruguai e reduzir a criminalidade. Segundo o presidente, a maconha não será legalizada, mas regulada, em substituição a um mercado à margem das regras. A oposição criticou a transformação do país em um “laboratório” e ameaçava recorrer a um referendo para derrubar o projeto. Rival de Mujica em 2009, o ex-presidente Luis Alberto Lacalle ironizou e sugeriu a criação de uma “Petrobras da erva”.
A Junta Internacional de Fiscalização de
Estupefacientes, órgão das Nações Unidas responsável por supervisionar o
cumprimento de convenções sobre drogas, condenou a decisão e afirmou que a lei
viola os tratados internacionais assinados pelo Uruguai. Em nota, Raymond Yans,
presidente da entidade, declarou “surpresa” com a aprovação e se reportou a uma
convenção de 52 anos atrás. “O objetivo principal da Convenção Única de 1961 é
proteger a saúde e o bem-estar da humanidade. A Cannabis está submetida
a controle por esta convenção, que exige dos Estados signatários limitar seu
uso a fins médicos e científicos, devido a seu potencial para causar
dependência.”
Um documento interno da ONU, divulgado pelo jornal
britânico The Guardian no começo de dezembro, revela, porém, uma
insatisfação crescente dos países que assinaram a convenção. A Noruega e o
México criticam os maus resultados da guerra às drogas e da proibição. Para a
Suíça, a repressão tende a afastar os consumidores dos serviços de saúde
pública que previnem as doenças transmissíveis pelo sangue. O Equador solicitou
“esforços especiais” no sentido de reduzir a demanda.
Diante das críticas, Mujica ressaltou o caráter
inovador da legislação e manteve-se firme. “Vamos ter dificuldades? Certamente,
mas a quantidade de mortos por ajustes de contas por causas vinculadas ao
narcotráfico representa uma dificuldade muito maior”, disse, em entrevista ao
uruguaio La República. “Iniciamos um caminho para combater o vício por
meio da educação e identificando os que consomem e tendem a se desviar do
caminho. Einstein dizia que não há maior absurdo que pretender mudar os
resultados repetindo sempre a mesma fórmula. Por isso queremos experimentar
outros métodos.”
Tanto o líder uruguaio quanto sua mulher, a também ex-tupamara e senadora pela Frente Ampla Lucía Topolansky, confessaram ter pouco ou zero conhecimento sobre a maconha até assumirem o projeto pela legalização. “Nós dois, como temos certa idade (ela, 69, ele, 78), éramos perfeitos ignorantes no assunto. Éramos. Agora não”, disse Topolansky, cotada para o posto de vice na chapa do provável candidato à sucessão de Mujica, o ex-presidente Tabaré Vázquez.
Tanto o líder uruguaio quanto sua mulher, a também ex-tupamara e senadora pela Frente Ampla Lucía Topolansky, confessaram ter pouco ou zero conhecimento sobre a maconha até assumirem o projeto pela legalização. “Nós dois, como temos certa idade (ela, 69, ele, 78), éramos perfeitos ignorantes no assunto. Éramos. Agora não”, disse Topolansky, cotada para o posto de vice na chapa do provável candidato à sucessão de Mujica, o ex-presidente Tabaré Vázquez.
Quando a notícia sobre a legalização apareceu nas
agências internacionais, surgiram as primeiras reações contrárias na
vizinhança. No Peru, especialistas temiam que a liberação aumentasse a produção
de drogas no país de Ollanta Humala. Segundo levantamentos de especialistas, a
maconha a ser produzida pelo sistema estatal uruguaio não daria para cobrir nem
a metade da demanda de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. “O Uruguai,
minúsculo em população, pode funcionar como um ‘país-laboratório’ perfeito. O
potencial impacto negativo para os países vizinhos, se vier a acontecer, deverá
ter proporções muito pequenas”, opina o psiquiatra Luís Fernando Tófoli,
professor da Unicamp. “Ao se colocar em perspectiva o tamanho do passo dado na
direção de poupar as vidas perdidas na guerra contra o tráfico, é um risco que
vale a pena ser corrido.”
Houve quem recebesse a brisa vinda do Sul com franco entusiasmo. O ministro das Relações Exteriores, Luis Almagro, contou que as embaixadas uruguaias têm recebido consultas de estrangeiros interessados em fixar residência no país onde a maconha é livre, mas esclareceu: não será permitido o “turismo da Cannabis” nos moldes da Holanda. E o potencial econômico da produção e comercialização começa a atrair as atenções de centenas de produtores agrícolas e investidores estrangeiros, segundo o jornal uruguaio El Observador.
Houve quem recebesse a brisa vinda do Sul com franco entusiasmo. O ministro das Relações Exteriores, Luis Almagro, contou que as embaixadas uruguaias têm recebido consultas de estrangeiros interessados em fixar residência no país onde a maconha é livre, mas esclareceu: não será permitido o “turismo da Cannabis” nos moldes da Holanda. E o potencial econômico da produção e comercialização começa a atrair as atenções de centenas de produtores agrícolas e investidores estrangeiros, segundo o jornal uruguaio El Observador.
Para o ex-presidente mexicano Vicente Fox, hoje um
ativista e futuro investidor da maconha liberada, a legalização foi um “dia de
festa”. “Parece-me que o Uruguai vai ganhar uma grande reputação. A medida é
correta, vai evitar ser um território com violência e narcotráfico como no
México. É uma decisão muito vanguardista.” Em maio, o ex-presidente se associou
ao ex-executivo da Microsoft Jamen Shively, que registrou a primeira marca de
maconha, a Diego Pellicer, em homenagem a um antepassado de Shively.
Até o momento, a dupla conseguiu reunir os 10 milhões de dólares necessários para investir em uma casa de distribuição de Cannabis no estado de Washington, um dos dois estados americanos onde é permitida a venda de maconha para uso recreativo. O outro é o Colorado. Em 18 estados, o uso medicinal é permitido. Presume-se que apenas nos EUA o negócio da maconha poderá movimentar 20 bilhões de dólares anuais.
Obviamente, a ideia do socialista Mujica, ao chamar para o Estado a produção e comercialização da maconha, não é transformar o vício em negócio. Ao contrário. O presidente do Uruguai conquistou fãs ao redor do mundo por sua posição anticonsumo, como ficou explícito no célebre discurso na Assembleia das Nações Unidas, em setembro. “A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado”, criticou. Não seria com a maconha, uma planta, que Mujica iria agir diferente, em busca de divisas para sua nação.
Até o momento, a dupla conseguiu reunir os 10 milhões de dólares necessários para investir em uma casa de distribuição de Cannabis no estado de Washington, um dos dois estados americanos onde é permitida a venda de maconha para uso recreativo. O outro é o Colorado. Em 18 estados, o uso medicinal é permitido. Presume-se que apenas nos EUA o negócio da maconha poderá movimentar 20 bilhões de dólares anuais.
Obviamente, a ideia do socialista Mujica, ao chamar para o Estado a produção e comercialização da maconha, não é transformar o vício em negócio. Ao contrário. O presidente do Uruguai conquistou fãs ao redor do mundo por sua posição anticonsumo, como ficou explícito no célebre discurso na Assembleia das Nações Unidas, em setembro. “A política, eterna mãe do acontecer humano, ficou limitada à economia e ao mercado”, criticou. Não seria com a maconha, uma planta, que Mujica iria agir diferente, em busca de divisas para sua nação.
A principal dúvida recai sobre o modelo estatal de
produção e comercialização. “Acho excessivamente regulamentado, diante de uma
planta tão ‘anárquica’. Pode incentivar a desobediência civil a alguns pontos,
como a necessidade de cadastro ou o limite de cultivo. Mas ainda é cedo para
julgar”, pondera Tófoli. “O plano está posto. Vamos vê-lo em funcionamento na
sociedade uruguaia para podermos criticar, sugerir melhoras e, principalmente,
pensar como proceder no Brasil.”
Em um subcontinente dividido entre a névoa do
socialismo do século XXI e uma esquerda desenvolvimentista à moda dos anos 60
do século passado, Mujica mostra-se uma liderança sintonizada às demandas da
modernidade. Logo ele, mais parecido a um personagem saído de algum romance latino-americano
do século XIX.
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