Por Celio Levyman em
05/06/2012 na edição 697
Muito bem, apesar de não ser
aparentemente um tema complexo e polêmico, escrever sobre os medicamentos
genéricos não é exatamente uma tarefa fácil e pretendo deixar claro o porquê.
Ontem (30/5), em alguns órgãos
de mídia, tradicionais e na internet, publicou-se pesquisa divulgada por
instituições públicas e de defesa do consumidor mostrando dados bastante
chamativos, como variações monstruosas de preços entre o medicamento referência
e um fabricante de seu genérico (caso do antinflamatório diclofenaco, com mais
de 4.000% de variação) e mesmo variações extraordinárias de preço entre o mesmo
medicamento de referência em farmácias distintas do mesmo estado.
Em primeiro lugar, algumas críticas:
creio ser bastante óbvio o assunto preço e qualidade de medicamentos para a
população em geral, uma vez que muita gente tem que usar um ou mais
medicamentos eventualmente, e várias pessoas de modo crônico. Contudo, a
divulgação do assunto foi quase restrita e praticamente reproduzindo dados, sem
comentários, entrevistas, avaliações etc. Online, alguns internautas postaram
alguma coisa, mas ficou por aí. Escorregada feia da imprensa sensu lato.
Vamos então ao que interessa,
tentando preencher essa lacuna, antes, porém, comentando as dificuldades que um
médico enfrenta ao querer abordar o assunto.
Lei dos Genéricos
Apenas para lembrar, os
medicamentos possuem um princípio ativo, também conhecido como nome genérico,
que é a droga em si. Até 1999, a indústria farmacêutica lançava um remédio,
batizava o mesmo com um nome fantasia e detinha a patente. O primeiro a
fabricar o mesmo, em geral alguma multinacional, que pesquisou o mesmo.
Contudo, no governo FHC, seguindo modelo usado em países com sistemas de saúde
distintos, como EUA, Reino Unido e Canadá, foi aprovada a Lei dos Genéricos.
Ela alterava legislação anterior de 1976 em pontos fundamentais: a propriedade
intelectual, ou patente, ficava reduzida a dez anos. Após esse período, o
laboratório proprietário da marca poderia continuar fabricando e
comercializando seu produto, mas qualquer outro laboratório que mostrasse
interesse poderia solicitar à Anvisa a fabricação do genérico do mesmo. Comercializado
com o nome do princípio ativo, em embalagem com faixa amarela e um “G”, o
remédio certamente custaria menos: não seria computador na margem de lucro os
gastos com o desenvolvimento da droga, o marketing inicial, a propriedade do
nome fantasia, amostras grátis e um longo etc. Resumindo, seria vendido apenas
o medicamento em si, com seu nome genérico e a preços mais baixos. A previsão
inicial baseava-se no que acontecia em outros países, com uma média de corte do
valor final ao consumidor (preço máximo ao consumidor, PMC) da ordem de ao
menos 50%, tornando acessíveis a inúmeras pessoas medicamentos antes
impensáveis em serem utilizados por boa parte da população.
Com relação à qualidade, o
texto legal exige que o laboratório que queira fabricar um determinado produto
genérico deve apresentar três amostras do seu a serem comparadas com o
medicamento referência em testes laboratoriais de bioequivalência e
biodisponibilidade; simplificando, testes que mostrariam se o genérico
efetivamente continha a mesma droga e na mesma concentração que o de marca e se
seria metabolizada no corpo do paciente do mesmo modo. Sendo assim, caso a
equivalência fosse atestada, o mesmo remédio teria a vantagem de ser mais
barato.
Claro que houve amplo uso
político da Lei dos Genéricos, especialmente pelo então ministro da Saúde, José
Serra, que cita esse seu feito até os dias de hoje em todas as campanhas
eleitorais de que participou. De qualquer forma, foi um avanço muito grande,
assim como os benefícios para os usuários de medicamentos também são
evidentemente extraordinários.
Exame de
equivalência
No bojo da campanha para
lançamento dos genéricos e/ou nos textos legais, incentivou-se a classe médica
e demais profissionais de saúde a prescreverem em seus receituários o nome
genérico, ficando a critério do comprador se levaria o de marca ou algum mais
barato. A rede pública de saúde também estava obrigada a utilizar genéricos e
os médicos, a receitarem nos papéis públicos a nomenclatura genérica.
As entidades de classe, como o
Conselho Federal de Medicina e os regionais, associações médicas e do
consumidor etc. apoiaram efusivamente a nova Lei, com toda a razão. Falar algo
“contra” genéricos passou a ser considerado quase um crime, uma evidência da
ligação do médico com a indústria farmacêutica; e, claro, não existindo apena
um remédio de marca e seus genéricos, mas também os similares, que são
fabricados por laboratórios com nomes fantasia diferentes, mas não têm os
mesmos deveres de controle de qualidade, lançaram-se muitos avisos de
“Cuidado!”, uma vez que se poderia estar sendo vendido gato por lebre, sem
controle. Assim, comentar sobre genéricos é no mínimo polêmico; alguns podem
julgar antiético e talvez mesmo ilegal.
Mas um bom tempo já se passou
desde 1999 e algumas coisas fazem com que os médicos fiquem a pensar, mas nem
sempre dispostos a comentar publicamente. Não que seja algum tipo de heroísmo
de minha parte, até mesmo por não haver como provar ou deixar de provar a
maioria dessas questões, mas é incômodo falar sobre hipóteses, contra a
corrente e, pior ainda, aparentando ser contra a economia popular... Não é nada
disso, não tenho vínculos com indústrias farmacêuticas, nacionais ou
multinacionais, tampouco com farmácias. O que me incomoda, creio ser de fácil
compreensão.
Vejamos: controle de
qualidade. Os laboratórios credenciados pela Anvisa para fazer os citados
testes de equivalência possuem renome institucional e não há porque duvidar de
sua seriedade. Mas que certas coisas ficam nebulosas, isso ficam: ao contrário
de alguns outros países, o exame de equivalência é exigido quando um
determinado laboratório quer produzir um genérico, mas em nenhum momento ele é
reavaliado depois, por amostragem e/ou fiscalização sem aviso. Isso gera uma
questão clara: o laboratório “A” fabrica seu medicamento de referência, perde a
patente e aparece o laboratório “B” desejando fabricar o genérico. Entrega seu
produto para análise e é aprovado. Até aí, tudo perfeito. Mas quem garante que
essa equivalência perfeita só ocorreu nessa primeira avaliação para aprovação e
não foi mantida ao longo do tempo?
Observamos um número tão
grande de laboratórios a fabricar genéricos, e a preços tão incrivelmente
baixos, que a frase sempre lembrada do conservador economista Milton Friedman
não pode deixar de ser lembrada: não há almoço grátis! Que o genérico seja mais
barato pelas razões apontadas acima, se compreende bem, mas quando a esmola é
demasiada, é claro que santos pacientes e médicos desconfiam. Preços
incrivelmente mais baixos não podem ocorrer à toa!
Volta e meia creio que todo
médico observa que um paciente seu, usando um medicamento de marca ou genérico
de laboratório conhecido está bem controlado de seu problema de saúde, mas
quando troca de fabricante de genérico, há uma piora do quadro clínico.
Coincidência? Efeito psicológico? Má vontade com um benfeitor que quer lucrar
pouco? Não há como saber, pois para isso necessitaríamos de novo exame de
equivalência...
Cabe à imprensa
levantar dúvidas
E as coisas são mais
complexas: uma das únicas coisas sem sentido algum, que jamais deveria ocorrer
no caso de medicamentos de marca versus genéricos, volta e meia acontece – o
remédio referência sai mais barato que o genérico. Isso é a inversão completa
do princípio fundamental a nortear a legislação! Claro que aparecem algumas
explicações, como a de que o fabricante do medicamento referência resolveu por
um tempo baratear seu produto para concorrer com os genéricos e, depois de
tanto tempo já com a legislação em vigor, isso seria de se esperar como compensação
econômico-legal previsível (nunca entendi quando advogados tentaram me explicar
melhor essa parte, mas enfim...) e por aí vai. É mais ou menos como quando
todos concordam que um Audi custa mais que um Gol, mas depois de alguns anos as
concessionárias passam a vender o Gol mais caro.
Outra coisa: na rede pública,
os médicos são obrigador a receitar o nome genérico, certo? Tem toda a lógica
do mundo. Contudo, na prática, ao se dar a receita de um genérico para o
paciente retirar em uma unidade de saúde, ele não sai com um medicamento dessa
categoria, tampouco com o de referência, mas com um similar, muitas vezes de
laboratórios completamente desconhecidos! Ora, isso vai contra a Lei dos
Genéricos, mas a explicação dada se baseia na Lei das Licitações – vale o menor
preço. O que ninguém explica é por que nos editais das tais licitações não
consta que devem participar de tais concorrências apenas medicamentos
genéricos, daí se aplicando o critério do menor preço.
Uma das coisas interessantes
na legislação dos genéricos é deixar ao paciente o direito de escolha: esteja
na prescrição o nome genérico ou de marca, ele pode escolher qual vai levar,
segundo seus próprios critérios. Mas quando se trata de medicação controlada,
em receituário especial (e isso não ocorria antes...), caso a receita tenha o
nome do medicamento de marca, o paciente só pode levar aquele, e não o genérico
do mesmo, enquanto o vice-versa vale! Dá para entender a lógica disso?
E voltamos ao começo do texto,
as discrepâncias de preço: variações são esperadas, é uma economia de mercado.
Mas existem tantos preços absurdamente caros quanto outros também efusivamente
muito baratos que qualquer tentativa de explicação lógica cai por terra. Talvez
a resposta seja a mesma do supercomputador do “Guia do Mochileiro das
Galáxias”, que após bilhões de anos calculando a resposta para a pergunta
fundamental sobre como, de onde e por que o universo e os seres que nele
habitam existem deu a famosa resposta “42”. Então, nessas questões todas
ligadas aos genéricos, acho que me encontro frente à mesma resposta “42”, pois
ninguém explica satisfatoriamente o que ocorre.
Será um caso de teoria da
conspiração exacerbada de minha parte? Deixei de ler alguma coisa nas
entrelinhas? Todos estão contentes mesmo? Não sei. Mas para ter as respostas
adequadas certamente não vai bastar o Ministério Público, Conselhos de
Medicina, Procons e assemelhados a questionar: é mais uma vez papel da imprensa
levantar todas essas dúvidas e outras mais certamente por aí existam, para que a
sociedade pressione por uma transparência maior nesse nevoeiro medicamentoso.
***
[Celio Levyman é médico,
mestre em neurologia pela Unifesp, ex-conselheiro e ex-diretor do Cremesp]
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